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26 de Abril de 2024

Escolas brasileiras jogam livros no lixo.

Publicado por Carolina Salles
há 10 anos

Às vezes, temos orgulho de ser brasileiro. Às vezes, não. Li uma notícia que me fez sentir vergonha. Centenas de livros foram jogados no lixo em um matagal em Belém do Pará. Eram livros didáticos, alguns novos, sem marcas de uso – nos informa Victor Furtado, que assinou a matéria (O Globo e O Liberal 6/5). No meio do lixo tinha até tampa de privada. Não mencionei nada disso na conferência que dei quinta-feira na Feira Internacional do Livro de Bogotá. De puro constrangimento.

No entanto, essa notícia cabia como uma luva na minha fala, em que pretendia discutir, entre outras coisas, os hábitos de leitura dos brasileiros e a relação que temos com o livro, destacando como é que os índios estão lendo hoje no Brasil textos em português e até em línguas indígenas. Comecei com uma frase do Aylton Krenak:

- Quando aceitei aprender a ler e escrever, encarei a alfabetização como quem compra um peixe que tem espinha. Tirei as espinhas e escolhi o que eu queria. Acho que a maioria das crianças que vão hoje àescola e que são alfabetizadas é obrigada a engolir o peixe com espinha e tudo.

Concentrei minha fala sobre os índios e a leitura, mas silenciei, morto de vergonha, sobre os livros no lixo. A vergonha aumentou porque os colombianos estão festejando o lançamento de livros bilíngues escritos em sete línguas indígenas, entre elas a língua Ticuna, que é falada, escrita e lida também no Brasil, no Alto Solimões. São livros da coleção do projeto Territórios Narrados do Plano Nacional de Leitura do Ministério de Educação da Colômbia, que organizou o evento e me convidou para dar a conferencia. Nada falei porque roupa suja a gente lava em casa, num espaço sem-vergonha como este.

Num contexto no qual se promove o livro e a leitura, como é que eu ia falar da gigantesca lixoteca que está se transformando o nosso país? Fiquei assombrado quando descobri, com a ajuda do Google, que jogar livros no lixo, como ocorreu em Belém, não é um ato isolado. Trata-se de prática corriqueira no Brasil. Vejam pequena amostra nos últimos cinco anos apenas daquilo que foi publicado na mídia. É assustador.

No gari: a esperança

Maio 2014, Pará – Centenas de livros são encontrados num lixão no matagal no bairro do Barreiro, em Belém. Moradores da área apontam que o material escolar foi jogado lá na tarde de domingo.

Março 2014, Bahia – Um morador de Santo Antônio de Jesus informou a Rádio Andaiá, que indo procurar madeira próximo a Praia do Dendê encontrou muitos livros novos no lixo, em pacotes lacrados, enviados pelo MEC para as escolas públicas da zona rural de Teolândia.

Janeiro 2014, Alagoas – Mais de cinco mil livros no lixão da cidade de Ouro Branco, sertão alagoano. O prefeito Atevaldo Silva (PMDB, vixe, vixe) alegou que uma análise técnica constatou que os livros eram antigos e não tinham qualquer uso prático para os alunos da cidade. O vereador Sandro Amorim negou e mostrou fotos dos livros descartados, todos datados de 2013.

Junho 2013, Pernambuco – Num terreno da Estação do Forró, em Salgueiro, um gari encontrou muitos livros jogados no lixo, em pacotes ainda lacrados, todos em bom estado de conservação e editados em 2012. O gari criticou o desperdício e levou alguns exemplares para seus filhos.

Março 2013, Amapá – Quase três mil livros didáticos agonizam no lixo, no Amapá, em dois pontos da BR-156 que corta o estado. Eles deveriam ter sido entregues em escolas de cinco municípios. A Polícia Federal investiga uma empresa de Belém, responsável pela entrega.

Agosto 2012, Rio Grande do Sul – Livros didáticos foram localizados pelo empresário Fabiano Casara, 29 anos, no lixo em Caxias do Sul, eram livros de geografia e português, sem uso, ao lado de dois contêineres na Perimetral Oeste. Junto havia papéis do MEC com os títulos das obras e o destinatário: o Instituto Educacional Cristóvão de Mendoza.

Urubus leitores

Abril 2012, São Paulo – Livros didáticos que deveriam ser usados por alunos das escolas públicas são encontrados em depósito de lixo em Bragança Paulista, no interior de São Paulo.

Fevereiro 2012, São Paulo – Mais de 7 mil livros didáticos de inglês, matemática e sociologia atirados na mata, numa área de preservação ambiental próximo à rodovia de acesso ao município de Rincão. A Polícia Militar fez um Boletim de Ocorrência e levou o material para ser periciado. A Secretaria de Estado da Educação ficou de bico calado.

Abril 2010, Paraná – No Uberaba, Curitiba, mais de 150 livros de literatura foram encontrados pela estudante de Direito Josivânia Rorim, 34 anos, na lixeira da Escola Donatila Caron, em sacos pretos, entre eles obras de Jorge Amado e Mário de Andrade. Nota oficial da Secretaria Municipal de Educação informa que escolas não tem autorização para jogar livros no lixo. A diretora diz que “foi um engano”.

Março 2010, Goiás – Mais de 12 mil livros, descartados sem nenhum critério, são retirados de um lixão de Iporá. Segundo a Secretaria de Educação de Goiás, os livros não mais utilizados são reciclados.

Outubro 2009, São Paulo – Cerca de 1.500 livros didáticos novinhos serviam de pista de pouso para urubus num lixão em Ribeirão Preto. Outra quantidade dormia em uma caçamba na periferia. A Polícia investiga o descarte de milhares de livros de filosofia, língua portuguesa, matemática e química do ensino médio. A Secretaria de Educação, em nota, prometeu investigar o caso e punir os responsáveis, informando que 5.500 escolas de todo o Estado, em 2009, receberam 144 milhões de livros dos quais 2,8 milhões destinados a Ribeirão Preto no valor total de R$ 113 milhões.

Setembro 2009, Paraná – Na Vila das Torres, em Curitiba, uma biblio­teca comunitária foi montada com livros retirados do lixo. O acervo hoje é de cerca 6 mil obras.

Peixe e espinhas

Não tenho mais espaço para continuar com os exemplos. Há muitos outros. Milhares de livros estão sendo desovados em matagais, num crime triplo: contra o saber, contra o meio ambiente e contra as pessoas. Sem falar do desfalque no Erário Nacional. O que é que os livros fizeram para merecerem tal agressão? Ora, direis, existem livros tão ruins que merecem ir mesmo para a lata do lixo. Eu nem queria tocar nesse assunto, mas já que vocês insistem…

É na leitura que um livro se faz. Não carece sacralizar ou fetichizar o livro, atribuindo-lhe poderes sobrenaturais. Sabemos que muita porcaria é editada para satisfazer vaidades pessoais ou encher bolsos de espertalhões. Berinho, eterno Secretário de Cultura do Estado do Amazonas, sabe do que estou falando. De qualquer forma, devemos discutir política editorial e políticas de leitura, mas jogar no lixo livro nunca usado, editado com dinheiro do contribuinte, é crime de lesa-humanidade.

Existe algo de podre no reino da Dinamarca. Tem muito espertalhão ganhando dinheiro com essa história, já que o livro didático é uma mercadoria comprada e distribuída com recursos públicos. Livro, no Brasil, virou caso de polícia. A Polícia diz que está investigando, mas até agora não se tem notícia de ninguém preso por jogar peixe fresco no lixo, quando tem tanta gente passando fome. Felizmente existem, aqui e ali, garis que recuperam o peixe antes de apodrecer. Eles fazem mais pela cultura do país do que algumas secretarias de cultura e de educação.

P. S. – Pensei inicialmente em abordar aqui o que falei na conferência e dar notícias sobre os Territórios Narrados. Acabei escrevendo sobre o que não falei e sobre territórios silenciados. Fica para a próxima.

José Ribamar Bessa Freire, jornalista, colunista convidado do Direto da Redação. Doutor em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É professor da Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNI-Rio), onde orienta pesquisas de mestrado e doutorado, e professor da UERJ, onde coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas da Faculdade de Educação. Ministra cursos de formação de professores indígenas em diferentes regiões do Brasil, assessorando a produção de material didático. Assina coluna no Diário do Amazonas e mantém o blog Taqui Pra Ti.

É editado pelo jornalista Rui Martins.

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