Busca sem resultado
jusbrasil.com.br
25 de Abril de 2024

Quão “cordial” é o povo brasileiro?

Publicado por Carolina Salles
há 9 anos

Por Leonardo Boff *

Dizer que o brasileiro é um “homem cordial” vem do escritor Ribeiro Couto, expressão generalizada por Sérgio Buarque de Holanda em seu conhecido livro: “Raízes do Brasil” de 1936 que lhe dedica o inteiro capítulo V. Mas esclarece, contrariando Cassiano Ricardo que entendia a “cordialidade”como bondade e a polidez, que “nossa forma ordinária de convívio social é no fundo, justamente o contrário da polidez”(da 21ª edição de 1989 p. 107). Sergio Buarque assume a cordialidade no sentido estritamente etimológico: vem de coração. O brasileiro se orienta muito mais pelo coração do que pela razão. Do coração podem provir o amor e o ódio. Bem diz o autor: ”a inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, visto que uma e outra nascem do coração”(p.107). Escrevo tudo isso para entender os sentimentos “cordiais” que irromperam na campanha presidencial de 2014. Houve por uma parte declarações de entusiasmo e de amor até ao fanatismo para os dois candidatos e por outra, de ódios profundos, expressões chulas por parte de ambas as partes do eleitorado. Verificou-se o que Buarque de Holanda escreveu: a falta de polidez no nosso convívio social.

Talvez em nenhuma campanha anterior se expressaram os gestos “cordiais” dos brasileirosno sentido de amor e ódio contidos nesta palavra. Quem seguiu as redes sociais, se deu conta dos níveis baixíssimos de polidez, de desrespeito mútuo e até falta de sentido democrático como convivência com as diferenças. Essa falta de respeito repercutiu também nos debates entre os candidatos, transmitidos pela TV. Por exemplo, que um dos candidatos chame a Presidenta do país de “leviana e mentirosa” se inscreve dentro desta lógica “cordial”, embora revele grande falta de respeito diante da dignidade do mais alto cargo da nação.

Para entender melhor esta nossa “cordialidade” cabe referir duas heranças que oneram nossa cidadania: a colonização e a escravidão. A colonização produziu em nós o sentimento de submissão, tendo que assumir as formas políticas, a língua, a religião e os hábitos do colonizador português. Em consequência criou-se a Casa Grande e a Senzala. Como bem o mostrou Gilberto Freyre não se trata de instituições sociais exteriores. Elas foraminternalizadas na forma de um dualismo perverso: de um lado os senhor que tudo possui e manda e do outro o servo que pouco tem e obedece ou também a hierarquização social que se revela pela divisão entre ricos e pobres. Essa estrutura subsiste na cabeça das pessoas e se tornou um código de interpretação da realidade.

Outra tradição muito perversa foi a escravidão. Cabe recordar que houve uma época, entre 1817-1818, em que mais da metade do Brasil era composta de escravos (50,6%). Hoje cerca de 60% possui algo em seu sangue de escravos afro-descendentes. O catecismo que os padres ensinavam aos escravos era “paciência, resignação e obediência”; aos escravocratas se ensinava “moderação e benevolência” coisa que, de fato, pouco se praticava. A escravidão foi internalizada na forma de discriminação e preconceito contra o negro que devia sempre servir. Pagar o salário é entendido por muitos ainda como uma caridade e não um dever, porque os escravos antes faziam tudo de graça e, imaginam que devem continuar assim. Pois desta forma se tratam, em muitos casos, os empregados e empregadas domésticas ou os peões de fazendas.

As consequências destas duas tradições estão no inconsciente coletivo brasileiro em termos, não tanto de conflito de classe (que também existe) mas antes de conflitos de status social. Diz-se que o negro é preguiçoso quando sabemos que foi ele quem construiu quase tudo que temos em nossas cidades. O nordestino é ignorante, porque vive no semi-árido sob pesados constrangimentos ambientais, quando é um povo altamente criativo, desperto e trabalhador. Do nordeste nos vêm grandes escritores, poetas, atores e atrizes. No Brasil de hoje é região que mais cresce economicamente na ordem de 2-3%, portanto, acima da média nacional. Mas os preconceitos os castigam à inferioridade.

Todas essas contradições de nossa “cordialidade” apareceram nos twitters, facebooks e outras redes sociais. Somos seres contraditórios em demasia.

Acrescento ainda um argumento de ordem antropológica para compreender a irrupção dos amores e ódios nesta campanha eleitoral. Trata-se da ambiguidade fontal da condição humana. Cada um possui a sua dimensão de luz e de sombra, de sim-bólica (que une) e de dia-bólica (que divide). Os modernos falam que somos simultaneamente dementes e sapientes (Morin), quer dizer, pessoas de racionalidade e bondade e ao mesmo tempo de irracionalidade e maldade. A tradição cristã fala que somos simultaneamente santos e pecadores. Na feliz expressão de Santo Agostinho: cada um é Adão, cada um é Cristo, vale dizer, cada um é cheio de limitações e vícios e ao mesmo tempo é portador de virtudes e de uma dimensão divina. Esta situação não é um defeito mas uma característica da condition humaine. Cada um deve saber equilibrar estas duas forças e na melhor das hipóteses, dar primazia às dimensões de luz sobre as de sombras, as de Cristo sobre as do velho Adão.

Nestes meses de campanha eleitoral se mostrou quem somos por dentro, “cordiais” mas no duplo sentido: cheios de raiva e de indignação e ao mesmo tempo de exaltação positiva e de militância séria e auto-controlada.

Não devemos nem rir nem chorar, mas procurar entender. Mas não é suficiente entender; urge buscar formas civilizadas da “cordialidade” na qual predomine a vontade de cooperação em vista do bem comum, se respeite o legítimo espaço de uma oposição inteligente e se acolham as diferentes opções políticas. O Brasil precisa se unir para que todos juntos enfrentemos os graves problemas internos e externos (guerras de grande devastação e a grave crise no sistema-Terra e no sistema-vida), num projeto por todos assumido para que se crie o que se chamou de o Brasil como a “Terra da boa Esperança”(Ignacy Sachs).

* teólogo e escritor. Leonardo Boff escreveu “O despertar da águia: o dia-bólico e o sim-bólico na consstrução da realidade”, Vozes, Petrópolis 1998.

FONTE

  • Sobre o autorDireito Ambiental
  • Publicações2621
  • Seguidores3784
Detalhes da publicação
  • Tipo do documentoNotícia
  • Visualizações1976
De onde vêm as informações do Jusbrasil?
Este conteúdo foi produzido e/ou disponibilizado por pessoas da Comunidade, que são responsáveis pelas respectivas opiniões. O Jusbrasil realiza a moderação do conteúdo de nossa Comunidade. Mesmo assim, caso entenda que o conteúdo deste artigo viole as Regras de Publicação, clique na opção "reportar" que o nosso time irá avaliar o relato e tomar as medidas cabíveis, se necessário. Conheça nossos Termos de uso e Regras de Publicação.
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/quao-cordial-e-o-povo-brasileiro/148920009

Informações relacionadas

Thayná Silveira, Estudante de Direito
Artigoshá 6 anos

Resenha: Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda (Cap. 5 e 6)

Luiz Flávio Gomes, Político
Artigoshá 12 anos

O mito da cordialidade do brasileiro: mais uma mentira!

Andréa Luiza Coelho, Advogado
Artigoshá 2 anos

Os desafios enfrentados pelas pessoas LGBTQI+ no Sistema Carcerário

Artigoshá 8 anos

Legitimidade na ação de dissolução parcial de sociedade e os seus fundamentos do objeto da ação de dissolução

Luiz Flávio Gomes, Político
Artigoshá 12 anos

O brasileiro é pacífico?

16 Comentários

Faça um comentário construtivo para esse documento.

Não use muitas letras maiúsculas, isso denota "GRITAR" ;)

Frei. As campanhas não podem ser comparadas.
O partido que o senhor sempre defendeu usou de fraudes tais como uso dos Correios para entrega de suas mensagens e bloqueio das enviadas pelo adversário; usou de mentiras tais como as que as "bolsas" seriam extintas; disse que a independência do BC tiraria a comida da mesa; usou de publicações apócrifas e muitas outras.
Frei o senhor deveria ser menos parcial. Lembre-se que o Partido que sempre é defendido pelo senhor sequer assinou a Constituição Federal; foi contra o plano real e a lei de responsabilidade fiscal.
Por fim sugiro que ouça a palestra de Graça Salgueiro sobre o chamado "Foro de São Paulo" e os movimentos dele surgidos e dos que virão, principalmente o que foi feito pelos terrorista à igreja católica e ao povo. continuar lendo

Assim como o Sérgio Buarque, considero o Darcy Ribeiro e Gilberto Freyre como os grandes antropólogos na nossa sociedade. Tanto é que os seus estudos perpetuam-se deveras atuais.

Com base nos seus compêndios, bem como neste artigo, acredito que estamos naquela fase híbrida do contratualismo iluminista X realismo do Maquiavel.

Todos adotam um discurso socialista, no sentido de igualdade, porém não suportam opiniões alheias divergentes. Infelizmente chegou ao ponto das pessoas terem receios de expor seus pensamentos.

Dias atrás um rapaz publicou um polêmico artigo sobre aborto. Antes de dar minha opinião divergindo à dele, parabenizei o rapaz pela "coragem": http://www.jusbrasil.com.br/comentarios/145666558#comment_145666558

Por outro lado, acredito que estamos caminhando num bom caminho tendo em vista estarmos derrubando certos dogmas. Cansei de ouvir um deles sendo "política e religião não se discutem".

Ora, temos que discutir, sim! Além do mais, Thomás de Aquino dizia que só podemos conhecer o nosso criador através da criatura. Noutras palavras, a busca da verdade tem que ter o debate.

Porém, discussão não é sinônimo de briga. Pelo que todos constatamos no mês de outrubro, inclusive pelas redes sociais, foram mútuas agressões verbais por conta de "posicionamentos" políticos. Logo, no caso em tela, o limite do debate é o respeito.

Por fim, aproveitando o "texto cordial", transcrevo a também atual frase do Voltaire: "Posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las."

Beijos, Abraços e Bom Debate! continuar lendo

Sandro, você disse tudo. Vivemos, mesmo, numa ditadura do politicamente correto, Ir contra o pensamento considerado correto é até crime. O articulista lamenta o que foi dito sobre a mandatária, contudo olvidou-se do comportamento dela com relação aos adversários. Esse frei é PT. continuar lendo

Vc não sabe quem foi Darcy Ribeiro na realidade. Ele tinha um sitio em Teresópolis na época que era Ministro da Agricultura ou Educação no governo João Goulart. O carro que fazia o trabalho do sitio, ficava lá, era do Ministério, o motorista pago pelo Ministério e toda despesa paga pelo ministério. Chico se rebelou contra o pagamento da ECAD para os compositores menores (10% da arrecadação seriam destinados aos compositores menos favorecidos - Governo Figueiredo). Ele e Gilberto Gil berraram na hora. Estes são os socialistas de nosso país. Vendem um peixe podre. continuar lendo

Gostei do Texto! Interessante e atual, refletindo a atual problemática vivida na sociedade. continuar lendo

Gosto e acompanho o pensamento de Leonardo Boff há décadas.

Em minha tese de doutorado Ohio University / UFMG, 1984, no volume VALORES E CULTURA DO DESENVOLVIMENTO, tive a oportunidade de incluir sua Teologia do Cativeiro e Libertação como o mais recente clássico das teorias do desenvolvimento. Pós Marx, Weber, Toinees e outros.

Entretanto todos perdemos a isenção quando se trata de defender o próprio candidato, time de futebol ou interesse. Não é diferente o caso.

Boff, a despeito de sua inteligência impar, se esquece de avaliar que a campanha de sua candidata foi A MAIS SÓRDIDA da história. Não é à toa que o termo PTralha se incorporou aos dicionários como símbolo de tal sordidez, não pontual mas sistemática. E que os heróis deste quadrilha estão cumprindo pena em presídios. Por ROUBO e CORRUPÇÃO.

Espero que o grande teólogo se liberte do cativeiro de sua opção PTralha e volte a produzir novas e isentas manifestações de sua genialidade.
O Véio. continuar lendo

Ajuda de financiamento e crédito aos particulares
Tem necessidade de dinheiro para comprar um automóvel, um apartamento,
pagar a vossa fatura, criar uma empresa ou financiar um projeto mas
infelizmente o banco põe-vos condições das quais são incapazes.
Ou seja pediu tanto crédito e tem cair sobre
más pessoas ou não tem os meios para pagar qualquer
despesas pedidas. Estamos lá para ajudá-los. Fazemos de empréstimo
entre particular que vai de 1000 à 4.000.000€. O nosso objetivo é ajudar
os nossos irmãos e irmãs em dificuldades de dinheiro para lutar contra
pobreza. Se encontrar-se na necessidade de dinheiro não hesitar
contactar-nos pelo nosso esmalte seguinte continuar lendo

Esse destempero do Frei em pender a balança de sua crítica para o lado da "presidenta", também, é um ato cordial, porquanto origina-se de um coração fanático e desarrazoado. Uma pena, quando um homem com sua bagagem de conhecimento a coloca a serviço da vilania e da sordidez. Não foi a toa que o Papa João Paulo II o chamou às falas. continuar lendo